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“VOU FALAR DA MINHA EXPERIÊNCIA, SÓ QUE VOU TRAZER TODOS ESSES ELEMENTOS DO UNIVERSO DITO FEMININO: O ORNAMENTAL, A FLOR, A BORBOLETA; E VOU JUNTAR ISSO NUMA COISA SÓ. A MINHA IDEIA, DESDE O INÍCIO, ERA INCOMODAR AS PESSOAS COM A FUSÃO. VOCÊ PERCEBE QUE EXISTE UMA FORÇAÇÃO DE BARRA PELA CISÃO, QUE, DAQUI PRA CÁ É HOMEM, DAQUI PRA LÁ É MULHER.” *Por Átila Moreno Invasão é com ele mesmo. E não pense que o artista plástico Fábio Carvalho se esconde dentro da trincheira. Ao ocupar espaços e objetos, esse carioca rouba os símbolos para si e os devolve ao público com outros significados, destravando limites para indefinir certezas. Uma parte do seu trabalho pode ser vista na exposição coletiva “A Palavra Líquida – Questões de Gêneros”, no Sesc Tijuca. A série “Macho Toys” brinca com a virilidade masculina ao ornamentar os bonecos de soldados, repletos de flores, estas que também passeiam por pósteres antigos de atletas. Cartazes de combatentes de guerra ganham esse toque especial em “Dos que partem, aos que ficam”, uma marcha abrindo caminho para variações sobre sexualidade. Uma verdadeira guerra declarada, entre o que é feminino e masculino, rotulados pelo senso comum. Aliás, esse é a bala na agulha da coluna de hoje “D&P com Átila Moreno”. Saboreie com toda calma do mundo. AM – Como e quando foi o início da sua trajetória na arte? FC – Meu interesse por arte, sem querer parecer clichê, é uma coisa que já existia na minha família. Meu pai é professor de Literatura e sempre teve interesse por arte. Ele sempre levava a gente, todo fim de semana, para um parque ou museu. Então, era uma coisa quase natural pra mim. Sempre brinquei muito de pintar. AM – Mas, ali, na infância, você já começava a manifestar alguma coisa nesse caminho? FC – Pra mim era normal o fato de toda criança gostar de desenhar e pintar. E acho que é mesmo. Acho que toda criança tinha esse interesse. Eu não tinha interesse pela arte elevada, estudada. Mas lembro de, quando criança, copiar Picasso (Pablo Picasso: 1881-1973), Matisse (Henri Matisse: 1869-1954), essas coisas. AM – Bom, isso não é qualquer criança que faz, né (risos)… FC – Exato (risos). Tinha essas enciclopédias e fascículos de grandes mestres. Então, eu gostava de ler. Lembro que meu irmão e eu tínhamos medo de olhar o Goya (Francisco de Goya: 1746-1828), por causa dos monstros. AM – Que maravilhoso isso… FC – Tinha o Saturno comendo o próprio filho. Aqueles horrores que o Goya pintou. A gente olhava aquilo com fascinação e horror. Meu pai tinha a “Divina Comédia”, com a ilustração de Doré (Gustave Doré: 1832-1828). Era esse meu contato com arte, que acho, inclusive, o melhor contato. Não é tipo: “olha, isso aqui é arte”. Depois, na adolescência e na faculdade, perdi completamente o contato e a prática com a arte. AM – Como esse contato voltou? FC – Cursei Biologia Marinha, mas, já na faculdade, comecei a me envolver com Informática. Sou meio renascentista nesse aspecto (risos). Eu estava trabalhando com algo relacionado a essa área, junto do namorado de uma amiga. Fomos para um congresso. Na volta, eles passaram em um sítio, com uma cabana chique, que tinha um pé-direito monumental, e, lá, era o atelier de uma artista. Não lembro direito as coisas que ela pintava. Só lembro que, depois, quando cheguei ao Rio, eu catei umas tintas, achei uma tela e pintei uma coisa qualquer, horrorosa. AM – Você guarda isso hoje? FC – Não, já joguei isso fora. Pintei em cima de um poster que tinha no meu quarto. AM – E era o quê? FC – Alguma coisa de rock, de alguma banda. Pintei de branco, por cima. Depois, eu olhei para aquilo: pareciam dois espermatozóides gigantes. Era pra ser abstrato, mas…Era muito anos 80. Ah, mas, desde o momento que entrei naquele ateliê, e fiquei em choque com aquilo, pensei: eu quero isso de novo. Aí, não foi de imediato que voltei. Mas dei início à leitura sobre arte outra vez. Comecei a desenhar em casa e a frequentar o Centro de Arte Maria Teresa Vieira. Na época, ela era viva e fui ser aluno dela. O que aprendi lá foi confiar em mim e não ter vergonha ou pudor de querer fazer arte. Foi essa a grande lição. O lance dela era deixar a pessoa seguir o próprio caminho e ela dava poucos toques. Depois a Maria Teresa falou: “Fábio, tudo que eu podia te passar já passei. Não tenho mais nada pra te ensinar”. Parecia que a gente estava terminando um relacionamento. Foi horrível (risos). “Agora eu acho que você deveria procurar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Vai porque acredito que seu caminho começa lá.” Eu não esqueço isso. E foi mesmo, porque quando cheguei lá tive que quebrar tudo. Toda confiança que tinha construído naquele outro espaço, tendo que enfrentar a arte contemporânea, o que é pra valer dentro desse circuito. Tive que tomar um choque, destruir tudo, não fisicamente, mas, internamente, e, aí, comecei a me reconstruir como artista. Foi difícil, mas muito importante. No segundo ano, fui estudar com Milton Machado, aí, foi a destruição. Foi quando tive que zerar e começar tudo de novo. Até hoje o considero como meu grande mestre. Tive outros também como Ricardo Basbaum E Fernando Cocchiarale. AM – Você citou alguns mentores ao longo da sua trajetória. Queria saber também quais são as suas principais referências artísticas. FC – Nessa época de Parque Lage, na primeira fase do meu trabalho, tive como referências, ou como influências, coisas de fora das artes plásticas. E acho que até hoje é muito assim. Lembro que David Lynch foi muito importante pra mim nesse período. Tem uma cena em “Twin Peaks: Fire Walk with Me” que me inspirou. Todos os momentos do meu trabalho são uma tradução, de certa forma, para mim mesmo, das coisas que estão me interessando e me perturbando. AM – Seria tipo uma terapia? Uma forma de se reencontrar? FC – Não. Seria para ajudar a pensar. Porque, na verdade, eu não tenho respostas no meu trabalho. E acredito que arte não dá resposta. Ele só ferra ainda mais com você, digo, todos nós. O que ela tem que provocar é questionamento, por isso não considero como terapia. Terapia eu fiz na terapia. Então, lá você tenta encontrar respostas para você mesmo. AM – E muitas vezes nem lá encontra… FC – Também não. Quase nunca encontra. Você tem alguns insights e fica feliz com isso. Mas o trabalho em si eu quero que ele não tenha respostas e, na verdade, tem que ter problemas. Isso, talvez, foi uma das coisas que eu trouxe do Milton Machado. O trabalho tem que manter uma virulência, senão ele é uma ilustração. Ele tem que te perturbar, te fazer pensar; e, claro, cada um vai buscar uma resposta diferente. AM – Você já chegou a receber esse tipo de resposta claramente do público? FC – Eu gosto muito de ficar anônimo nas exposições. Como não sou um rosto conhecido no mercado de arte, fico como se fosse parte do público. Fico ali ouvindo as coisas. Às vezes chega alguém e pergunta: “o que você quis dizer com isso?” Eu sempre viro: “o que isso diz para você”? Aí, a pessoa fala: “ah, não sei se vou dizer a resposta certa”. Bom, todas as respostas serão certas. AM – E que tipo de coisa você já ouviu? FC – Lembro que, na exposição “Macho Toys”, tive uma das melhores reações. Estava na galeria, aí, entrou a mãe acompanhada de uma criança, de aparentemente oito anos, que vira e fala: “aí, mãe, olha o soldadinho. Posso brincar?” Ele correu para o boneco, parou e travou: “Mas, mãe, isso é um brinquedo de menino ou menina?” Perfeito, criança. A melhor resposta. É isso mesmo que tem nesse trabalho. É por aí. Naquela época, inclusive, o trabalho era todo feito com brinquedo que é oferecido ao menino, que direta ou indiretamente, molda a masculinidade dele. Esse tipo de reação é muito mais interessante do que aquela informada, de outro artista, de um crítico, que buscar florear e ser inteligente. Uma vez, também, quando fiz uma exposição na galeria da instituição “Meninos de Luz”, do Pavão-Pavãozinho, dois soldados da UPP estavam passando e entraram. Nesta exposição, eu tinha uma série “A Hora do Rancho”, que são pratos de porcelanas decorados com desenhos do universo militar no fundo. Como se fosse um prato pintado, de madame, de dondoca, só que com ilustração com bota de campanha, barraca, granada, bomba, essas coisas. Um soldado não deu a mínima pra aquilo. O outro permaneceu lá, por muito tempo. Ele fazia selfie com os pratos. Aí, ele falou: “poxa, cara, muito legal alguém entender que a gente tem um outro lado, que a gente não é só violência, brutalidade. Que a gente tem o momento da confraternização, a hora do almoço da gente no rancho”. Ele viu por outro lado. Acho isso fantástico. O que foi bonito é que um soldado da UPP relaxou por um momento e agradeceu porque alguém vê que eles também têm um lado mais carinhoso e afetuoso. Essas reações pra mim são as mais bacanas. Quando ele entrou, fiquei em pânico. Achei que ele ia ficar puto. AM – De onde surgiu a ideia de brincar com a simbologia entre masculino e feminino, usando bonecos e flores? FC – Eu vinha pensando nessa coisa de brinquedo de menino e de menina. Menina brinca com louçinha e menino com bola, com tanque de guerra. Resolvi fazer algum trabalho justamente com isso. Com essa necessidade de haver dois gêneros que se excluem, que se antagonizam, que se espelham, cada um pra um lado. E a ideia foi assim: trabalhar com o que vivi quando criança. Eu brinquei com pistola, com bola, com soldadinho, tanque de guerra, carro de polícia. Vou falar da minha experiência, só que vou trazer todos esses elementos do universo dito feminino: o ornamental, a flor, a borboleta; e vou juntar isso numa coisa só. A minha ideia, desde o início, era incomodar as pessoas com a fusão. Você percebe que existe uma forçação de barra pela cisão, que, daqui pra cá é homem, daqui pra lá é mulher. Até me perguntaram na época porque eu não fazia com bonecas. AM – Já ia te perguntar isso agora…FC – O lance é o seguinte: não me sinto confortável de trabalhar com alguma coisa que não me é próxima, íntima e verdadeira. Nunca brinquei de boneca, a não ser quando brincava de casinha com minha prima. AM – Por que será que a gente tem uma dificuldade em lidar com essas simbologias consideradas femininas? Parece que há sempre uma aversão, principalmente, em nós, que somos homens, inclusive gay ou hétero. Sempre ocorre uma rejeição ao comportamento que é rotulado como mais afeminado. FC – Eu acho que ainda é um ranço que a gente carrega de toda uma herança de uma sociedade patriarcal, muito careta e machista. Dentro da sociedade patriarcal, qualquer coisa que seja vista como feminina é considerada inferior e sem valor. Isso vem desde a construção da sociedade burguesa para, justamente, desvalorizar a mulher. AM – E o projeto “Almofadinhas” com você e mais dois rapazes? Como surgiu esse nome? FC – O Rick Rodrigues trouxe um texto antigo sobre uma das origens possíveis do termo “almofadinhas”, que deu a cara para o projeto, que reúne também Rodrigo Mogiz. Teve um concurso dos rapazes ociosos bordando e pintando almofadinhas francesas (na cidade de Petrópolis, em 1919), e houve um piti qualquer por causa do resultado, isso caiu na imprensa e a imprensa caiu matando a pau, dizendo que esses meninos eram afetados, ociosos, e, aí, começaram a chamá-los de almofadinhas. Quando li esse texto, falei: “gente, nós somos os almofadinhas, ponto final”. Até para ser uma homenagem a esses rapazes. Hoje, na arte, ninguém liga se você bordar, mas, fora desse território protegido, já começa o olho torto. AM – Cada um de vocês borda uma peça de maneira separada? Como funciona? FC – Os trabalhos são individuais. A gente não é um coletivo. Cada um já tem o seu trabalho que é bastante autoral. AM – E como o trabalho de cada um dialoga com o outro? FC – Desde o início, a gente já falava que tínhamos que nos misturar ao máximo. Grande parte do trabalho do Rodrigo é com bordado. O Rick começou a fazer bordado como extensão do desenho. A minha produção é uma variedade de mídias absurda, e o bordado é mais uma. Comecei a fazer bordado com um contato em Portugal, em 2011, quando vi esse tipo de bordado muito específico, dos lenços dos namorados, que é uma coisa da tradição feminina de lá. Não só a minha peça final contém a discussão de gênero. Quando submeto meu corpo e mente masculinos ao bordado, já é dialeticamente parte do trabalho. AM – Vi que você tem uma ligação muito forte com Portugal. Você nunca pensou em fazer algo parecido no Brasil, como a intervenção artística com azulejos nas ruas de Lisboa? FB – Eu participei de uma residência artística na Gamboa, na região das obras da Olimpíadas. Pelo fato da região da Gamboa ser um local com influência portuguesa e ter uma arquitetura muito próxima de lá, então, meu trabalho foi com azulejos de papel, só que com figuras de atletas. Peguei algumas ilustrações vintages dos esportistas, ornamentei com flores e apliquei nas fachadas. AM – Ainda focando aqui no Rio de Janeiro. Me preocupa muito essa gestão do atual prefeito, ainda mais pela sua forte ligação a uma ideologia religiosa que não tem qualquer identificação com a arte. FC – Eles são anti-iconografia. AM – Então, isso me preocupa devido ao rumo que as coisas vão tomar nessa área. Na sua cabeça, existe alguma alternativa para reverter isso? FC – Resistir. Continuar a ir pra rua. Dar a cara a tapa e continuar fazendo. Acho que o único jeito de resistir é não parar.
Até 16/4/2017 Local: galeria Casa Rosa do Sesc Tijuca – Rua Barão de Mesquita, 539 – Tijuca – Rio de Janeiro
**Átila Moreno é jornalista, com passagem pela TV Globo Minas, TV UFMG, Infoglobo e Universidade Corporativa do Transporte. É editor-chefe de conteúdo deste blog e escreve mensalmente para a Flesh-Mag. |
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