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Amofadinhas

Fábio Carvalho
abril/2016
texto de fundamentação do grupo Almofadinhas.
 
O ano era 1919, meses após o final da Primeira Guerra Mundial, no auge da República Velha, ou Primeira República, período marcado pelo domínio do poder das oligarquias rurais no cenário político e econômico brasileiro. Uma época de controle político exercido sobre o governo federal pela elite rural mineira e pela oligarquia cafeeira paulista, que com os capitais acumulados com a exportação do café, garantiram o início da industrialização do país.

Acontecimento que proporcionou mudanças na estrutura social brasileira, com a formação de uma classe operária e o crescimento e modernização do espaço urbano, com um crescente desejo da burguesia urbana em se apresentar segundo as modas e costumes mais atuais dos grandes centros europeus, em particular a França (PINTO, sem data).

Um concurso diferente mobilizou a cidade de Petrópolis (RJ): “rapazes elegantes e efeminados” se reuniram para definir quem era o melhor na arte de bordar e pintar almofadas trazidas da Europa especialmente para a ocasião. Assim definiu o escritor Raimundo Magalhães Jr., um conhecedor das modas daqueles tempos, biógrafo de João do Rio e pai da carnavalesca Rosa Magalhães, ao contar como surgiu o termo “almofadinha”, usado para designar nos tempos da República Velha os “tipos afetados, cheios de salamaleques e não‐me‐toques”.

Na ocasião, o resultado do incomum concurso não foi aceito por alguns dos rapazes perdedores, o que gerou desentendimentos e protestos. O escritor Lima Barreto, em uma de suas crônicas, comentou: “Foi à custa do esforço e abnegação dos pais que esses petroniozinhos de agora obtiveram ócio para bordar vagabundamente almofadinhas em Petrópolis, ao lado de meninas deliquescentes. Hércules caricatos ao lado de Onfales cloróticas e bobinhas.” (MIGÃO, 2013).

Hércules e Onfale. Peter Paul Rubens, 1603
Segundo a mitologia, Onfale era a bela rainha da Lídia. Quando Hércules matou Ífito, ele foi punido sendo vendido como escravo para Onfale. A sedutora Rainha, no entanto, se apaixonou pelo semideus, concedendo‐lhe então a liberdade, que foi recusada por Hércules, que também se apaixonara pela rainha, preferindo permanecer submisso ao seu lado como escravo por três anos.

Durante o período do cativeiro, Onfale vestia a pele do leão de Neméia, morto anteriormente por Hércules, e empunhava a clave do herói, enquanto este trajava suas delicadas roupas femininas, passando o tempo a fiar o linho aos seus pés (Perfume da Flor de Lótus, 2008).

Os “almofadinhas” deixaram para trás a praxe que determinava que os homens trajassem roupas escuras, ostentassem barbas e bigodes espessos, destacando sua virilidade, competência e um espírito de liderança nato, optando por roupas mais leves e de cores mais claras, personificando um novo homem do pós‐guerra, em harmonia com um crescente sentimento de “viver a vida intensamente” deste período.

Os “almofadinhas” eram homens que se preocupavam com a moda e aparência. Mantinham os cabelos com brilhantina, bem penteados, ternos impecáveis, sapatos novos, brilhantes, abusavam de novos acessórios, como chapéu panamá, gravatas borboleta e óculos redondos; apresentavam feições faciais limpas, ausência de barba, bigodes pequenos, e o uso de cosméticos para beleza.
Revista A Pilhéria, Recife, 1923, nº 94
A juventude buscava diferenciar‐se, individualizar‐se e isso refletiu‐se em seus trajes. O “novo dinheiro” precisava de uma “nova aparência”, mais de acordo com o novo espírito da época. Este novo homem se preocupava em esbanjar civilidade, com sua aparência e seus modos, pois estavam ligados com a modernidade que vinha do exterior.

Essa destradicionalização vem acompanhada de uma reação dos apegados aos antigos valores, que acusavam os almofadinhas de “feminização do social”, que estes promoviam uma “desvirilização” da sociedade, sugerindo a progressiva perda de valores patriarcais.

Esses “novos homens” foram constantemente ridicularizados pela imprensa, e tornaram‐se motivo de chacota, taxados de efeminados. “O almofadinha mostrava‐se assim, uma figura desviante colocando em xeque a macheza e a honra da sociedade masculina, ou de toda uma estética de machos acostumados com a "dureza das feições de seus homens” (MELO, 2014).

Como vemos, muita coisa não mudou de 1919 para os nossos dias e, ainda hoje, para muitos parece estranho, ou mesmo emasculante, como na alegoria da submissão de Hércules, quando um homem se dedica a atividades normalmente vistas pela maioria como “coisa de mulher”: bordar lenços, paninhos de mesa e almofadas, pintar pratos de porcelana, construir objetos frágeis e delicados com flores e borboletas.


Em 2017 homens que bordam certamente não são mais novidade no meio artístico. Bispo do Rosário e Leonilson produziram uma imensa obra baseada em, entre outros meios, bordados. Porém, fora deste meio, ainda vemos de narizes torcidos até reações mais violentas ao fato de que há homens que bordam, ou que tem como base de seus trabalhos atividades entendidas como “femininas”, o que para uma grande parcela da população brasileira (e de forma geral, ocidental) estaria “errado”, por não serem viris.

Fábio Carvalho | "Bai feliz buando" (em processo)
Como sabemos, estereótipos são simplesmente questões culturais, e como tal,  são dependentes de tempo e espaço; são acordos feitos por um certo grupo humano e que, em geral, por acontecerem ao longo de várias gerações, podem nos parecer "eternos", uma vez que nossas vidas são curtas, e testemunhamos apenas uma pequena fração deste processo.

Como indagou Ana Paula Simioni, “o que faz do ato de bordar uma prática vista como ‘naturalmente’ feminina? Por que quando realizado por homens só pode ser compreendido mediante o estigma da ambiguidade?” (SIMIONI, 2010). Uma explicação sugerida pela autora seria por a partir do século XVIII, principalmente, começou uma ruptura nítida entre a “grande arte” e as “artes aplicadas”. As pinturas de história e os retratos, bem como as grandes esculturas de figuras humanas, por diversas razões tornaram‐se os gêneros que passaram a ocupar o cume da hierarquia acadêmica, gêneros estes que dependiam da formação nas academias de arte, que eram vetadas às mulheres, que ficaram restritas às “artes menores” – as miniaturas, as pinturas em porcelana, as pinturas decorativas, as aquarelas, as naturezas‐mortas e, finalmente, todos os tipos de artes aplicadas, particularmente as tapeçarias e bordados.

acima: artesão borda o Kiswah.
abaixo: produção de Bishts | fonte: alrivadh.com
As artes aplicadas ficaram cada vez mais associadas ao estigma do trabalho feminino. Assim, tais modalidades foram sendo, aos poucos, feminizadas. As obras consideradas inferiores na hierarquia dos gêneros artísticos foram sendo associadas às práticas artísticas de mulheres. Ao longo do século XIX, montou‐se o seguinte círculo pernicioso: as mulheres, vistas como seres intelectualmente inferiores, eram consideradas capazes de realizar apenas uma arte feminina, ou seja, obras menos significativas do que aquelas feitas pelos homens “geniais”, como as grandes telas e as esculturas históricas.

Gêneros outrora valorizados, como a tapeçaria e o bordado, centrais durante a Idade Média, passaram, ao longo da Idade Moderna, a comportar duas cargas simbólicas negativas: a do trabalho “feminino”, logo inferior, e a do trabalho manual, cada dia mais desqualificado (SIMIONI, 2010).

Um contraponto que nos mostra como os valores associados aos gêneros são questões culturais, e portanto, acordos no tempo/espaço, são duas categorias de bordados na cultura islâmica que são realizados apenas por homens: O "Kiswah", um bordado gigantesco, trocado todos os anos, com 658 m2, 15Kg de fios de ouro sobre 670kg de seda preta, com custo de U$ 5,3 milhões que cobre a Caaba em Meca, centro das peregrinações muçulmanas e para onde todo muçulmano volta-se em suas preces diárias (EMEL, 2010), e o "Bisht", tradicional hábito masculino usado atualmente apenas em dias de gala, ricamente bordado, muitas vezes com fios de ouro e prata (HANNAH, 2011).

Do encontro de três artistas homens que se dedicam em seus trabalhos, por razões distintas, mas que se entrecruzam, ao território do sensível e do delicado, e que tem o bordado como um dos meios de produção de suas obras (mesmo que não exclusivamente), nasce a exposição “Almofadinhas”, que apresenta o trabalho de Fábio Carvalho (RJ), Rick Rodrigues (ES) e Rodrigo Mogiz (MG).

Agradecimentos a Rick Rodrigues e Rodrigo Mogiz pelas sugestões ao texto.

Bibliografia

EMEL (site). Making of the Kiswah, IN: Emel, Issue 74, novembro 2010. Disponível em:
http://www.emel.com/article?id=78&a_id=2201, acessado em: 17/05/2015.

HANNAH. Saudi Arabian Bisht. IN: Embroidery for ducks. Disponível em: embroideryforducks.com/2011/04/27/saudi‐
arabian‐bisht/, acessado em: 17/05/2015.

MELO, Alexandre Vieira da S. Melindrosas e almofadinhas: O masculino e o feminino por meios das charges nas revistas ilustradas (Recife, década de 1920), IN: Anais do 18º REDOR, Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2014. Disponível em: www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjL6OGF2     NAhVB G5AKHdqaDkcQFggeMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.ufpb.br%2Fevento%2Flti%2Focs%2Findex.php%2F18redor%2F18 redor%2Fpaper%2Fview%2F2127%2F833&usg=AFQjCNHPclQnA2VAC7xMF83‐dOjYXltjjg&sig2=LIBwBlDTKR24tcFCS‐ MM6w, acessado em: 11/07/2016.

MIGÃO, Pedro. Histórias Brasileiras – “Almofadinha – a Origem”, IN: Ouro de Tolo, 06/05/2013. Disponível em:
www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2013/05/historias‐brasileiras‐almofadinha‐a‐origem/, acessado em: 12/04/2016.

Perfume da Flor de Lótus (site). Onfale e Hércules, IN: O Perfume da Flor de Lótus, 19/04/2008. Disponível em:
perfumedalotus.blogspot.com.br/2008/04/amante‐de‐mitologia‐greco‐romana‐como.html, acessado em: 12/04/2011.

PINTO, Tales. República Velha (1889‐1930), IN: Brasil Escola, sem data. Disponível em:
brasilescola.uol.com.br/historiab/republica‐velha‐1889‐1930.htm, acessado em: 12/07/2016

SIMIONI, A. P. C. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on‐line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010. Disponível em: www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/anasimioni.html, acessado em: 12/04/2011.

 
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