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Pautado em Walter Benjamin, Buchloh identificará o caráter alegórico do procedimento da montagem, afirmando que nele estariam contemplados alguns dos princípios básicos da alegoria: "(...) apropriação e desgaste de significado, fragmentação e justaposição dialetal de fragmentos, e separação de significante e significado". ...Apropriação, fragmentação, justaposição, cisão entre significante e significado... Todos esses elementos estão presentes na produção apresentada na exposição, que reúne cerca de 50 auto-retratos produzidos nos últimos 25 anos, nas mais diversas mídias, entre as quais a fotografia, o xerox, o vídeo e o CD-ROM. Essas obras têm em comum o fato de, na maioria dos casos, os autores se utilizarem de registros (fotográficos ou fílmicos) dos próprios corpos, realizados por terceiros, para produzirem seus "auto-retratos". Já aqueles que não se utilizam desse expediente, preferindo construir os próprios registros, tendem a manipular as imagens de seus corpos de maneira tão radical e objetiva, como se elas fossem meras imagens de seres anônimos, sem nenhuma conexão maior com seus autores. É justamente nessa atitude dos artistas com a própria imagem - seja esta tomada por ele ou por outrem - que reside o primeiro índice alegórico das obras aqui apresentadas: nelas as imagens são apropriadas, descontextualizadas, justapostas a outras imagens, transformando-se em discursos ambíguos, com significados velados, repletos de mistérios. Por trás da concepção de alegoria apontada por Buchloh, estariam as idéias do filósofo alemão sobre as práticas alegóricas no barroco europeu, originadas do impacto do capitalismo. Tais práticas, por sua vez, estariam muito próximas daquelas usadas pelos artistas modernos e contemporâneos, ligadas à apropriação de imagens já prontas, à colagem e à fotomontagem. Como afirma Buchloh, para Benjamin: "(...) 0 mundo dos objetos materiais, assim como a percepção geral do caráter efêmero do mundo durante o barroco, revela sua decadência com a transformação dos objetos em mercadorias, fenômeno que se produziu com o estabelecimento da produção capitalista. Esta desvalorização do objeto, sua divisão em valor de uso e em valor de troca, e o fato de sua função ser, em última instância, a de atuar exclusivamente como produtor de valor de troca, afeta profundamente a experiência do indivíduo..." Essa associação da alegoria com o objeto entendido como
mercadoria ganha um forte sentido quando nos lembramos que, ao atuar com
uma imagem já pronta de si mesmo - descontextualizando-a e mudando
seu significado original -, os artistas presentes nesta exposição
estariam operando dentro do universo da alegoria (como definido acima
por Benjamin Buchloh), vendo a própria imagem como um objeto já
afastado de si mesmo, uma mercadoria passível de ser eleita como
emblema de uma dada situação, real ou fictícia. Apesar das mudanças políticas ocorridas no Brasil ao longo
das últimas três décadas, a situação
do artista na sociedade local, no geral, apenas se agravou. Se, nos anos
70, ele saía da cena pública (onde atuara com alguma força
na década anterior), dando lugar aos ícones da cultura de
massa, hoje o artista se mantém confinado nos espaços restritos
do circuito de arte, operando questões com pouca ou nenhuma ressonância
imediata no campo social. |
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Ilhados no circuito, muitos desses artistas operam as próprias imagens, por apropriação ou pelo deslocamento para contextos outros, quase sempre impensáveis no momento em que foram concebidas. Embora todos os auto-retratos presentes nesta mostra - pela própria
natureza dos mesmos - trafeguem por vários nichos de significado,
podemos estabelecer três eixos de tipologia. Em primeiro lugar,
estão agrupados artistas que parecem encontrar, nas imagens e formas
criadas pela história da arte (em seus aspectos mais amplos), uma
espécie de porto seguro para as aspirações dos artistas.
No segundo conjunto, figuram artistas cujas montagens de autoretratos
têm como parâmetro imagens dos meios de comunicação
de massa, denunciando a presença massacrante dessa iconografia
em nosso cotidiano. Já no terceiro, incluem-se aqueles que buscam
nas fotos que lhes foram feitas no decorrer de suas vidas a base para
seus auto-retratos de adultos... (...) auto-retratos de profundo interesse
não apenas estético, como também psicológico
e sociológico. Fábio Carvalho joga, em Espelho Mnêmico
(1998), com as relações metafóricas entre fotografia
e espelho, como se fixasse neste último os vários momentos
de sua transformação de criança em adulto. Imersos no universo autocentrado das imagens que Ihes confere legitimidade
como artistas e enquanto indivíduos, mais do que nunca, esses artistas
e essas obras chamam a atenção para o impasse profundo da
arte nos dias de hoje, ilhada e sem possibilidade aparente de recompor
uma linha de atuação menos comprometida consigo mesma e
sua história e mais antenada com o que vai pela cabeça e
pelo coração do outro. Publicado no catálogo da exposição
Deslocamentos do Eu - O Auto Retrato Digital e Pré-Digital na Arte
Brasileira |
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