(...)
Câmera da memória
A câmera vem fomentando, então, por diversas vias, a criação de histórias pessoais. Desde seu surgimento, ela tem figurado no desejo de lembrar: recordações geradas porque imagens foram preservadas; situações recriadas pela presença e persistência de uma representação de si mesmo. Esta reconstrução da memória e da identidade mediatizada pela auto-imagem maquínica parece estar entre os tópicos explorados pelos artistas contemporâneos. É o caso de três trabalhos em particular: "Fotográfica Memória" (2000), de Clarissa Borges; "Espelho Mnêmico" (1998-2002) e "As Leis da Variação" (1996), de Fábio Carvalho.
Como pode ser observado, os dois primeiros trabalhos referenciam diretamente, já em seus títulos, essa problematização da lembrança pessoal através da imagem. Tanto "Fotográfica Memória" quanto "Espelho Mnêmico" integraram a exposição Deslocamentos do Eu: O Auto-Retrato Digital e Pré-Digital na Arte Brasileira (1976-2001), com curadoria de Tadeu Chiarelli e curadoria adjunta de Ricardo Resende. Essa mostra reuniu no Itaú Cultural, em Campinas (mais tarde, a exposição seguiu para o Paço das Artes, em São Paulo), cerca de 50 auto-retratos produzidos por 21 artistas. Conforme Tadeu Chiarelli: "Essas obras têm em comum o fato de, na maioria dos casos, os autores se utilizarem de registros (fotográficos ou fílmicos) dos próprios corpos, realizados por terceiros, para produzirem seus auto-retratos".
Assim, pode se dizer que estes trabalhos situam-se numa posição limítrofe da autorepresentação, e evidenciam uma estratégia bastante recorrente na produção artística e audiovisual contemporânea: partindo de referenciais biográficos, de registros familiares, eles põem em operação um gesto da apropriação do arquivo íntimo, no qual "os autores buscam nas fotos que lhe foram feitas no decorrer de suas vidas a base para seus auto-retratos de adultos". A fotografia trucada (e que desemboca, após o processamento digital, no monitor de vídeo), surge então como um modo de deslocar a identidade estável das coisas, propiciando, nesta atualização do acervo imagético pessoal, uma recriação memorial que é tornada pública ao ser veiculada nos circuitos de difusão. A produção de Clarissa Borges e Fábio Carvalho possui uma dimensão intermidiática, como as foto-autobiografias que Philippe Dubois observa ao deter-se sobre a emergência da fotografia no cinema de vanguarda (Raymond Depardon, Agnés Varda, Robert Frank, Chris Marker e Hollis Frampton), esse cinema do Eu, enunciado em primeira pessoa, que passa sempre pela encenação da fotografia. Um Eu autobiográfico que existe por meio da mediação da imagem-foto.
Por que a foto representa um objeto transicional privilegiado da inscrição autobiográfica no cinema? É a questão que Dubois nos coloca.
Contudo, os vídeos aqui comentados não são propriamente narrativos, não no sentido de propor uma diegese linear e retrospectiva sobre a vida dos sujeitos auto-representados. Ao referir-se à sua produção, Fábio Carvalho comenta que seus vídeos:
"São todos pensados para serem exibidos em loop, o que acentua ainda mais a ausência de uma narrativa linear. Eles podem ser assistidos a partir de qualquer ponto, quantas vezes a pessoa desejar, ou mesmo, nem é necessário assisti-los por inteiro. O tempo de duração é determinado por quem o vê, e não tanto pelo autor. (...) São séries de imagens ou séries de curtas seqüências gravadas, apresentadas em sucessão, sem constituir uma única e fechada ordem ou narrativa".
O caráter minimalista, circular e reiterativo destas produções nos remete à estilística formal do vídeo pioneiro, aproximando-se mais do formato do auto-retrato do que da autobiografia propriamente dita. Sobre esta distinção, Bellour lembra que: "Contrariamente à autobiografia, que narra uma vida, o auto-retrato narra apenas um Eu; o fato é que ele não depende propriamente dos eventos, e sua progressão se identifica apenas com seu movimento em torno da questão interminavelmente retomada: 'Quem sou eu?' (...) No auto-retrato, tudo isso reflui em direção a quem escreve para se conhecer melhor, descobrindo, porém, no ato de escrever, apenas uma prova fugidia de sua identidade".
Nos enquadramentos, por sua vez, percebe-se a vigência de uma certa tradição do retrato: a fotografia da criança de bruços (em "Fotográfica Memória"); ou o primeiro plano de identificação pessoal, o 3 por 4 (no caso de "Espelho Mnêmico" e "As Leis da Variação").
Produções Auto-referenciais
(...)
|
Fig. 2 - Espelho Mnêmico (1998). Cortesia Coleção Gilberto Chateaubriand - MAM-RJ. |
A preocupação com a construção da memória está presente também em "Espelho Mnêmico", uma sobreposição de quatro retratos de Fábio Carvalho - aos 3, 20, 28 e 33 anos. Este trabalho surge como fotografia em 1998 e depois, em 2002, desdobra-se para a imagem em movimento (procedimento, aliás, característico dos artistas contemporâneos: passeio entre diversas mídias, principalmente nesta interface entre fotografia e vídeo), evidenciando a hibridez que faz parte da "natureza" do vídeo. Conforme Fábio Carvalho: "O vídeo me serviu durante alguns anos como um suporte a mais para meus trabalhos, especialmente quando estava lidando com imagens trabalhadas no computador, sobre questões de identidade. A maioria dos vídeos que produzi entre 1995 e 1997 sequer teve uma "câmera" na sua origem; "As leis da variação", de 1996, é um destes. Bem, até houve uma câmera, várias na verdade, mas câmeras fotográficas, para a obtenção das imagens originais usadas para criar as variações fenotípicas. Para ser totalmente exato, cheguei a usar uma câmera de vídeo, mas para obter stills de algumas das imagens de pessoas usadas no trabalho".
Esta passagem por imagens advindas de diversos meios não é linear. Para Fábio Carvalho há trabalhos: Em que não sei mais (nem me preocupo muito com isso) do que é o que, de onde (mídia) veio o que.... Tem vezes em que uma imagem de vídeo foi digitalizada, trabalhada no computador, e depois tem uma saída em cópia fotográfica.... Que diabos é isso? Não importa! Da mesma forma que vários outros artistas, e não necessariamente apenas os artistas atuais, pratico linguagens e formas híbridas.
|
Fig. 3 - Frames do vídeo "As Leis da Variação" (1996) - Fusão fenotípica digital de fotografias do rosto de diversas pessoas com um retrato de Fábio Carvalho. |
Em "As Leis da Variação", a referência às mudanças de paradigma do corpo através das atuais políticas biotecnológicas (vide o Projeto Genoma), inscrevem esse trabalho para um campo de preocupações concernentes com a vida, a morte e a reprodutibilidade. Se em "Espelho Mnêmico" persiste ainda uma unidade auto-referencial (na junção dos quatro retratos de Fábio Carvalho), o vídeo "As Leis da Variação", por sua vez, incluirá outros sujeitos nesta trama. Aqui, o autor funde sua auto-imagem com fotografias de diversas pessoas (a partir da "fusão fenotípica digital ", como ele mesmo diz), gerando assim retratos fidedignos de sujeitos inexistentes, mas que carregam um traço de similaridade com as feições do artista. Estas auto-imagens híbridas são intercaladas com trechos de "As Origens das Espécies", de Charles Darwin, denotando a influência que a formação em biologia apresenta na produção do autor. Fábio Carvalho alia as estratégias auto-referenciais a uma preocupação com os mistérios da origem.
As estratégias de enunciação auto-reflexivas criam condições para a inserção do sujeito enunciador no interior do próprio texto, onde a figura-autor comparece como agente e personagem principal de tramas que — ainda que endossadas pela referência à própria vida, e, por conseguinte, à uma idéia de verdade — não escondem suas dívidas com as tênues bordas da ficção. Historicamente, este movimento moderno manifesta-se através do campo autobiográfico, o qual tem persistido e se modificado através do tempo e das conseqüentes mudanças de suporte para a sua escritura. Rompendo com alguns aspectos de sua tradição, a autobiografia perpassa os diversos meios imagéticos. Transterritorial, ela reatualiza sua configuração na interface com outros meios. Retomando Dubois: A autobiografia implica um olhar auto-reflexivo, isto é, permite de uma certa maneira, um autoquestionamento do dispositivo: centrado sobre si mesmo, o sujeito não tem outra exterioridade a não ser a de encenar-se, conseqüentemente de tornar presentes suas próprias condições de existência enquanto imagem (...). A questão da autobiografia coloca a problemática das imagens na ordem explícita da subjetividade, na ordem da vida psíquica e dos processos de memória. A memória pessoal, isto é, a que diz respeito aos atos de recordação que tomam como objeto a história de vida de cada um, é mais do que um tópico explorado pelas produções aqui comentadas. O papel do vídeo como uma tecnologia da memória é sempre presente: lembrando, esquecendo e contendo memórias. Recordar é duplicar-se, e são estas manifestações mnêmicas, operadas através da imagem maquínica, que configuram uma poética da subjetividade contemporânea. |